Wednesday, February 28, 2007

Monday, February 05, 2007

Lucífero

E se um anjo de luz com olhos negros te aparecesse vívido, com a mão aberta e riscada em linhas onde toda a vida que você nunca teve lhe fosse estendida? Por um segundo, e numa piscadela, pude experimentar uma eternidade de conforto e poder, beleza e riqueza. O mundo ajoelhou-se a meus pés e ofereceu-se em sacrifício aos meus mais obscuros desejos.

Nessa eternidade pude provar o sexo perverso e doentio que se cicatrizou em algum lugar escuro entre a alma e o espírito. Pude subjugar todos os meus ex-semelhantes, impondo-lhes minha ditadura de ordem onírica e subserviência. As regras faziam e desfaziam-se ao puro fluxo da consciência, e os sentidos acariciaram as mais tenras carnes já nascidas nesse lodo.

Assisti a uma guerra de camarote, onde filhos loucos desfolhavam seus pais com facas de cozinha, e regozijavam-se no remexer de suas vísceras recém estripadas. As mães gritavam em furor de uma arquibancada, e pediam mais sangue. Isso me deixou profundamente feliz.

Beleza e admiração juntaram-se em moléculas que construíram meu corpo naquele instante, e não havia um lugar onde não fosse cultuado e desejado. O corpo retesou-se a despeito dos anos vividos, e mostrou-se em curvas jamais idealizadas por estátuas gregas outrora esculpidas. Os punhos seguraram o mundo sem força, como um Atlas de pé, pronto para rodar o universo como um peão de corda.

Com seu sorriso demente, o anjo estava lá, e já não especulava possibilidades... Deliciava-se com a alma recém conquistada. Aceitei.
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Mateus Souza

Saturday, February 03, 2007

A TRISTEZA POR NÃO VER

O pequeno-homem-muito-pobre interrompeu sua caminhada e parou diante de bonito cenário, lá embaixo. A lua, naquela noite, a tudo clareava, nada passava: os morros; as mangueiras; as cercas; o brilho do arame-farpado nas cercas; os coqueiros; o lago; o outro lago; aquela casa...

Seu olhar lacrimejado, pelo vento no rosto, não pela tristeza, dizia o que estava bastante visível: o homem perdera! Não a perda circunstancial de algo que com ele estava e um dia se foi, mas a perda existencial, de coisa que nunca teve, mas que lhe pesava saber que poderia ter tido. Naquele momento, tardio, homem sem fé. Não muito velho, mas não jovem suficiente para recomeçar. Sua vida passara, pouca coisa restava.

Quis andar, naquela noite, quis pensar. Gostava de pensar, apesar de tudo, mas o preferia caminhando, à noite, quando o trabalho não o ocupava, e também quando o cansaço não o impedia.

Não lhe saía da cabeça o olhar da filha, de pena, de vergonha, diante de um pai magro; boca vazia; postura arqueada; chapéu de palha. Logo ela, que foi embora quando já mocinha, naquele caminhão, quando muito chovia, acompanhada de não-sei-quem.

Ao homem pouco restava: um barraco, uma cabra. O burrinho morrera no ano anterior. A esposa também “morrera” quando há muito o deixou. Ficaram-lhe as dores, o vazio, e o desejo não realizado.

Teria de ir a cidade, mas não gostava. Atravessar a ponte, entrar naquela fila, talvez, dormir na fila, conseguir um número (gostava dos números) ver um “dotôr”, se fazer entender por um “dotôr”, e por Deus, que este fosse mais paciente, teria menos vergonha, e ultimamente, a dor estava forte demais! Tinha medo de se perder na cidade. Tinha medo de morrer na cidade.

A cidade. Tanto barulho; tanta gente; tanto dinheiro naquelas malas pretas carregadas por aqueles homens de gravata. O banco, tão frio, tão bonito. O hospital sujo e aquelas bancas de revistas. Tudo tão colorido. Queria logo pegar o remédio na farmácia pública e ir para casa.

O “dotôr”? Nem o tocou. Falou pouco. De longe. Lavou as mãos, mesmo não tendo chegado perto. Do mesmo jeito que antes. O remédio, mais um, quando acabar, volta a dor, nada de cura.

Um homem negro no caminho da rodoviária, rolando no chão, abraçando seu lixo com amor, falando com as pessoas que passavam sem as conhecer; bem poderia ser ele: sujo, ferido, sem esperança, destituído de pudor, esquecendo que é homem, reduzido aos molambos.
Muito triste a cidade. Muito triste. No campo, a tristeza fica dentro da cada um, mas na cidade, aparece: A tristeza em cada esquina.

Muitas vezes, o pequeno-homem-muito-pobre se colocava a tentar entender as coisas que aconteciam ao seu redor. Principalmente nestas raras idas à cidade. Pois dentro do ônibus, a visão monótona da estrada lá fora, muitos pensamentos trazia. Muitas imagens. E a estranha sensação de haver uma ligação entre cada uma delas. A chave da vida, da compreensão do mundo, parecia estar o tempo todo diante de si, mas ele não a encontrava: Ele não entendia, por exemplo, como um país tão rico quanto o nosso, com tanta terra fértil, podia abrigar tanta gente passando fome. Ou então, por que as autoridades se empenhavam em combater a violência na cidade, e não faziam nada contra o desemprego na cidade. Ou até mesmo, - e infelizmente o pequeno-homem não possuía uma biografia que lhe possibilitasse saber que estava chegando perto de uma definitiva resposta - por que os governos permitiam que o mundo se dividisse em uma pequena minoria de bem-aventurados, e uma grande maioria de miseráveis. Suas reflexões, secretas, eram dessa natureza, quase sofisticadas, em contraste com sua expressão humilde, fala precária e aparência sofrida.

No banco vazio do ônibus, ao seu lado, um pedaço de papel mal dobrado e torcido. Jogado. Era um pequeno panfleto com desenho em branco e preto de um índio enjaulado dentro do que seria globo azul da bandeira nacional. Abaixo um texto pequeno. Ele achou o desenho feio, jogou-o fora, retornou às suas reflexões...

É uma pena que nosso herói, como tantos outros brasileiros, infelizmente não saiba ler, pois se soubesse, encontraria naquele encardido pedaço de papel que agora ajuda a entupir algum bueiro no centro da cidade, a resposta para todas as suas perguntas.

Vitor Souza

Friday, February 02, 2007

Nonsense de São Valentim

Estava eu na vibe com o meu cu pra fora quando um gato preto cruzou meu caminho.
"Ai meu deus!" exclamei, pensei que teria azar pelo resto da minha vida, pois o mesmo aconteceu a uma vizinha minha pouco antes dela ser devorada por tubarões. Orei em silencio e cruzei os dedos na esperança de poder reverter o ocorrido. Logo em seguida fui a uma preta velha para ela me benzer com seus raminhos e o tal mijo de jesus. Aproveitei e pedi pra ela benzer meu cu pra fora, o que ela também fez com prazer.

Deus é pai.
Segui meu caminho até o açougue para comprar um avental branco. 10 mangos? Seja o que for. Paguei e saí vestindo o avental.
No percurso de volta testemunhei uma colisão entre dois automóveis. Eu estava perto o suficiente para ser atingido por cacos de vidro, mas não se preocupem, eu não me machuquei. A passageira de um dos carros saiu voando pelo pára-brisas e, batendo suas asas, parou num terraço e deu uma cagada. Seu marido, o motorista, encontrava-se ensangüentado, estendido no pavimento, à beira da morte e provavelmente vendo sua vida de merda passar em frente de seus olhos.
"Precisamos de um cirurgião!" gritou um pedestre e, apontando pra mim, implorou para que eu desse assistência à infortunada vítima. "Mas quem disse que eu sou um cirurgião?" questionei. "O avental te entregou" disse ele, e como não havia como negar o fato eu busquei o caco de vidro mais afiado do recinto e me aproximei da vítima que, em desespero, gargarejava seu próprio sangue.
Cortei-lhe a barriga e tratei de reatar o intestino grosso ao delgado, mas poderia ser o delgado no grosso, não lembro, sei que quando se rouba carros, deve-se sempre cortar o fio verde primeiro para ignição, possivelmente o vermelho, mas o homem está morrendo! Não há tempo para essas trivialidades sobre o furto. Tenho que lhe salvar a vida!
Remexendo suas tripas, espremi sem querer uma artéria e seu sangue jorrou por todo lado, inclusive no meu recém comprado avental.
”Ahh! Filha da puta”, pensei, fiquei ressentido, magoado. Estou eu na maior boa vontade tentando lhe salvar a vida e o filha da puta vai e suja o meu avental novinho.
Levantei-me e desisti do homem, mandando-lhe à merda com um grunhido de mal gosto e um aceno de mão sarcástico.
A gentalha se aglomerou em torno do corpo, enojada pelas entranhas expostas porém aliviadas quando o homem finalmente morre.
"Eu fiz o que pude" disse eu para todos ouvirem e saio de cena.
No caminho de volta para casa, entrei numa loja de departamentos e comprei um avental decorado em flores. 15 mangos? Seja o que for. Paguei e pus o avental na sacola.
Bato na porta da casa da minha esposa e ela a abre.
"Feliz dia dos namorados" lhe digo e entrego o avental florido.

"O meu ficou sujo de sangue, nem imaginas o dia que tive”.
"O importante é que estás bem. Fiz um jantar delicioso pra gente."
"Convidasse sua mãe e sua avó?"
"Sim, estão na cozinha"
"Maravilha," digo animado, "esse vai ser o melhor dia dos namorados de todos", e nos beijamos apaixonados.


-Guilherme Rocha

Sunday, January 28, 2007

Relacoes

Quarta feira por volta das 7 da noite, 6 pessoas cairam no buraco do metro da estacao da Sé.Todos morreram esmagados pelo trem com uma multidao feita de platéia do trágico acidente.
No mesmo dia de manha li no jornal que os leoes do jardim zoológico da cidade seriam executados até o fim do mes por falta de verba da prefeitura caso nao recebessem doacoes para alimenta-los.
Agora a pergunta que nao quer calar:Por que nao?

Gerou-se desumanamente carne.Para ser humanitariamente carne.Isso me faz chegar à uma única conclusao:Deus age providencialmente e de forma muito espontanestranha.


Augusto Monteiro

Friday, January 26, 2007

Tardes de Ônibus

Estou sentado com a cabeça para fora da janela num ônibus lotado e com cheiro de sovaco. Percebo a comoção da sobrelotação, mas estou contente. Uma idosa se esforça para não cair. Uma mãe e seu bebê choram juntos. Empurro um gordinho mais para o lado dele do banco, mas sua massa corporal precisa invadir o meu espaço. Exalo decepcionado e volto a mirar a rua. Tento meter a mão no bolso pra ver a hora no telefone, mas desisto. Puta gordinho inconveniente. O ônibus não está se movendo. Há trânsito. Um acidente talvez. Certamente um acidente. Ouço sirenes. O gordo quer ver e mete a cara na minha frente. Sinto suas banhas alisando minhas glandes. Empurro ele novamente com um "vai te fuder" bem alto. Ele vira a cara pro lado. O povo curioso conversa e reage em desconforto enquanto a velha se apóia no gordo, quase caindo. Ele parece nem sentir o peso da leve senhora. Coisa de gordo. Duas putas entram no ônibus e se espremem entre os outros passageiros. Estimulados e lambendo lábios, alguns machos roçam sua masculinidade nas pobres vagabundas. Fico com inveja ao lado do meu gordo e sinto crescer uma leve ereção. Exalo impaciente. Olho pra rua em descomforto e logo me levanto, praticamente pulando por cima do gordo. Piso na mala de alguém, caindo para o lado da velha. Ela reclama algo, mas eu já estou entre os outros passageiros e não lhe dou atenção. Escolho a puta mais massuda e roço minha ereção contra sua bunda na saída do ônibus. "Desce aqui comigo". Ela não parece se importar. "Então vai te fuder". Já na rua, acendo um cigarro e me inclino na parede do ponto de ônibus. Vejo dois ou três ônibus passarem e no quarto eu entro. Não há muito movimento aqui então, decepcionado, saio no ponto seguinte. Exalo em ânsia e embarco no próximo. Esse estava mais animado, portanto tento chegar ao fundo do ônibus entre sacolas, pedreiros e estudantes. O povo reclama mas foda-se. Uma espécie de mãe de família não tira os olhos de mim. Ameaço com sutileza. Gesticulo paixão e mando-lhe um beijinho. Ela deixa de olhar com espanto e um puta ar de realeza. Exalo em negação e descanso as mãos nos joelhos. Olho em torno de mim e sinto vontade de cagar. Faço o trajeto para a saída do ônibus entre as mesmas sacolas e muletas e estou na rua novamente. Vou até o primeiro beco e cago numa caixa. Volto ao ponto com a caixa na mão e observo o movimento. Entro no primeiro ônibus a aparecer. Converso com o motorista sobre o motor e a mecânica do veículo. Pago ao cobrador e me sento. Vejo no meu relógio e são cinco horas da tarde. Às seis tem uma rota legal. Estudo o bairro e me situo. Deixo a caixa no ônibus, saio quatro blocos depois e atravesso a rua. Espero uns quinze minutos e lá está ele, o ônibus mais cobiçado do dia. Entro, ele está lotado e suado, do jeito que eu gosto. Me espremo até finalmente chegar ao meio e me deixo fluir nos movimentos do ônibus e o vai-vem dos corpos inertes de meus colegas passageiros. Zen.

-Guilherme Rocha

Thursday, January 25, 2007

A jovem e talentosa Beth Galleano e sua polêmica obra-prima

Beth rezava antes de dormir. Nada mecânico como pai nosso ou ave Maria, apenas travava um rápido e amistoso diálogo com Deus. Raramente pedia algo, normalmente agradecia. A despeito de ter sido batizada e ter feito a primeira comunhão, há anos não aparecia à missa do Padre Juan Ortiz que já demonstrava sinais derradeiros de vida, mas ainda encontrava força na alma para manter a severidade no controle de seu rebanho. Seu sotaque castelhano, aliado aos pesados traços da senilidade, conferiam a ele mais autoridade. Reclamava a ausência de Beth com sua mãe, Dirce, mas não havia argumentos capazes de trazer de volta a “ovelha desgarrada”, como dizia o pároco.
Aos 21 anos, Beth chamava a atenção de homens e mulheres pela exuberância de suas formas. Uma bela morena de longos e ondulados cabelos negros, olhos castanhos e, sobretudo, não havia como não notar sua extraordinária bunda arqueada, vibrante, firme e bojuda. Era a própria Dirce numa versão bem melhorada, pois a mãe havia sido cobiçada na juventude, e ainda guardava traços delicados e formas generosas. Era, sem dúvida, uma mulher gostosa chegando aos 50 anos. O casario assobradado, com piscina e jardim aos fundos, abrigava apenas as duas mais a velha empregada de duas décadas. O pai morrera jovem quando Beth tinha apenas dois anos. Morte súbita, do coração. Era um bom homem, hábil comerciante que deixou à mulher e única filha renda suficiente para sustentá-las com folga e conforto por mais duas gerações. Mas Dirce estava longe de ser dondoca e acomodada e tinha renda própria, dava aulas de reforço de português e geografia para alunos da quinta à oitava série.
Beth fazia letras na universidade federal, gratuita, entrou com louvor e boas notas, e sonhava abertamente em ser escritora. Perseverante e abnegada, logo no primeiro ano do curso tratou de publicar um livro de poemas, obviamente bancado com recursos próprios, mas que recebeu elogios acalorados de Rubens da Costa Braga, professor de literatura, famoso por suas acidez e mau-humor. As más línguas diziam, sempre à boca pequena, que a crítica elogiosa do mestre, publicada no jornal universitário, não tinha outra razão senão impressionar Beth para, como isso, quem sabe, ter uma boa chance de transar com ela. Mas o boato ainda mais capcioso dava conta de que a jovem Beth havia conseguido tal resenha favorável unicamente porque já havia deitado com o rabugento professor. Davam como certa essa abjeta troca de favores.
Por dois anos o boato fez mais sucesso que o livro. Beth não se preocupou em desmentir nada pois, esperta como era, notou que sua obra primeira “Sonhos de Borboleta” fora a mais comentada no campus durante todo esse tempo. Os calouros a admiravam e temiam, apontavam para ela e cochichavam. Gostando ou não - muitos sequer liam - a curiosidade fez com que a primeira impressão de 500 exemplares fosse esgotada nesse período. As garotas, mais terríveis, tratavam de apimentar a trama. No último ano de Beth no curso, corria uma versão pitoresca de que ela havia feito um pacto com o demo para que seu livro fosse um dos mais lidos, e comentados, do curso. De resto, Beth até que levou uma vida universitária bem normal. E de tão feliz da vida com o sucesso polêmico de seu livro nem quis escrever mais nada e apenas desfrutou de sua efêmera fama torta. Afinal, fama, reta ou torta, sempre traz proveitos.
O fato é que logo após a formatura Beth foi procurada por um executivo da área editorial. Era um sujeito de uma editora respeitada e bem conhecida. E como bom homem de negócios foi direto ao ponto. “Queremos publicar seu livro”. Beth não fez rodeios. “Quanto levo nisso?”. “Cinco mil reais no ato e mais 20% das vendas. Vamos fazer uma tiragem de cinco mil exemplares para fazer um teste nas capitais do sul e sudeste”. Negócio fechado. O livro saiu e, na última capa, o eloqüente texto lustroso de Rubem da Costa Braga destacando o talento prematuro de Beth e a delicadeza idílica dos poemas. Uma revista semana fez a crítica favorável. Tudo arranjado pela editora. As vendas foram impressionantes em se tratando de livros de poesia no Brasil. Em seis meses, quase três mil exemplares comercializados. Beth comentou com o executivo de seu sucesso na universidade por conta dos boatos. E contou, com detalhes, tudo o que inventaram dela. Os olhos do executivo brilharam. Um mês depois pipoca na imprensa: jovem e talentosa poeta Beth Galleano bancou a publicação de seu livro trabalhando como prostituta de luxo. Daí pra frente, foi programas de tv, entrevistas, palestras e convites para posar nua em revistas masculinas. “Sonhos de Borboleta” está na décima segunda edição. Vinte e cinco mil exemplares vendidos. Sucesso editorial. Beth guarda, contudo, uma frustração. Não pinta inspiração para escrever o próximo. Na verdade, não tem tempo. Reza diariamente para conseguir escrever um romance. Mas antes precisa pensar que tipo de boato vai espalhar.

por Cass